Saúde Planetária: um novo olhar sobre saúde e meio ambiente
Desde 2015, a Rockefeller Foundation e a revista científica The Lancet vêm apontando evidências científicas dos impactos da poluição ambiental sobre a saúde humana.
Os estudos foram um pontapé para a discussão sobre a chamada Saúde Planetária, que trata a sustentabilidade e a vida humana no planeta sob uma ótica cada vez mais integrativa, transdisciplinar e global.
Segundo o The Lancet, “saúde planetária é a conquista do mais alto padrão possível de saúde, bem-estar e equidade em todo o mundo, mediante atenção criteriosa aos sistemas humanos – políticos, econômicos e sociais – que moldam o futuro da humanidade e os sistemas naturais da Terra”.
Este período em que a humanidade passou a ser o principal agente das mudanças no planeta tem sido chamado de Antropoceno. E essas alterações decorrem dos padrões de consumo e produção a partir do uso de recursos naturais, como exemplo: absorção de CO2 atmosférico; alteração no uso da terra; uso de fertilizantes; aumento dos gases de efeito estufa; perda da biodiversidade; poluição química tóxica e redução de água potável.
O Jornal da Suprema convidou a pesquisadora da Fiocruz/BA, Nelzair Vianna, para explicar sobre a Saúde Planetária e os impactos da degradação ambiental, bem como da importância do profissional da saúde neste contexto.
Nelzair Vianna é Doutora em Ciências, Mestra em Medicina e Saúde, Especialista em Administração e Qualidade Hospitalar. Possui também Especialização em Poluição do Ar e Saúde Humana. É Fiscal da Vigilância Sanitária/SMS Salvador. Desenvolveu projetos de pesquisa e ações de intersetorialidade no tema poluição do ar e saúde humana em colaborações com academia e governo. Representa Salvador na rede internacional de qualidade do ar do C40. Líder Climática formada pelo Al Gore no The Climate Reality e Co- Fundadora do Fórum de Energia e Clima. Coordenadora da Câmara temática de saúde no Painel Salvador de Mudança do Clima. Integrante do Programa de embaixadores do Planetary Health Alliance 2019 e do Grupo de Estudos em Saúde Planetária do IEA/USP.
Nelzair Vianna - Pesquisadora Fioruz/BA
Jornal da Suprema: Como o conceito de Saúde Planetária entrou em seu campo de trabalho?
Nelzair Vianna: Trabalho com poluição do ar e impactos na saúde desde 2006. Este tema era abordado na ocasião no escopo de áreas como saúde ambiental, epidemiologia ambiental, saúde pública e saúde urbana. Somente em 2018, quando trabalhei com um grupo de pesquisadores da London School of Hygiene and Tropical Medicine e da University College London, fui apresentada ao conceito de Saúde Planetária dentro do projeto CUSSH (Complex Urban Systems for Sustainability and Health). Ainda em 2018 participei do Planetary Health Annual Meeting, o segundo encontro mundial de Saúde Planetária que foi realizado em Edimburgo, na Escócia. E neste encontro percebi que já havia um movimento para consolidar um novo campo, liderado por médicos de Harvard, onde entendi que o conceito de Saúde Planetária estava alinhado com todas atividades de pesquisa que vinha desenvolvendo ao longo da minha carreira. Envolve uma área transdisciplinar, que aborda a saúde da civilização num contexto que estuda não só os recursos naturais aos quais dependemos (água, ar, solo, alimentação, por exemplo), mas também as questões políticas, econômicas, sociais e culturais, que também são determinantes da nossa saúde. Percebi a possibilidade de validar meus estudos através de uma lente ampliada e ir além dos clássicos conceitos de determinantes biológicos e sociais da saúde. Em 2019 fui selecionada como embaixadora do Planetary Health Alliance no Annual Meeting realizado em Stanford, onde assumi o compromisso de ajudar a difundir o conceito de Saúde Planetária.
JS: Como pesquisadora e há anos se debruçando em trabalhos com a questão da qualidade do ar, como observa os efeitos desta poluição na saúde da população? Quais ações, enquanto especialista na área, vem sendo desenvolvidas para buscar soluções e melhores condições de qualidade do ar?
NV: A poluição do ar, como reconhecido pela Organização Mundial da Saúde, é uma grande ameaça para a saúde pública no século XXI. Ela é responsável pela morte prematura de sete milhões de pessoas ao ano. Os estudos têm demonstrado que os efeitos na saúde podem ocorrer de forma aguda ou crônica. Aplicamos duas formas para mensurar os danos da poluição à saúde: através de estudos que avaliam o risco relativo e também análises de impacto a saúde pela metodologia de OMS. Verificamos também políticas públicas que tem auxiliado a saúde das pessoas, como por exemplo, o benefício de uma ação climática, onde avaliamos a substituição da frota de ônibus em Salvador para um padrão menos poluente, que saiu do padrão de emissão EURO II para EURO V. Isso resultou na redução de mortes para doenças respiratórias e cardiovasculares e aumento da expectativa de vida. Analisamos ainda que essa melhoria na qualidade do ar beneficiou os cofres públicos com a redução de R$ 29 milhões ao ano que foram calculados pela redução da mortalidade e internamentos hospitalares por doenças respiratórias e cardiovasculares, considerando apenas a poluição pelos níveis de material particulado. Esses valores poderiam chegar até a R$ 139 milhões se considerado outros parâmetros de poluentes e cenários de substituição total da frota por ônibus elétricos.
Como cientista, desenvolvo estudo através de ações intersetoriais para trazer evidências que possam ser usadas pelos tomadores de decisão. Esses estudos trazem recomendações para as políticas de mitigação, o gerenciamento das fontes emissoras de poluição na cidade, investimento na melhoria de transportes públicos, áreas verdes, incentivos a mobilidade ativa, construção de ciclovias e estímulos a deslocamentos mais ativos, bem como recomendações clínicas e também para novas regulamentações dos padrões de qualidade do ar. Nossos projetos têm adotado a abordagem de análises de riscos onde o diagnóstico e soluções têm sido discutidos a partir do envolvimento de todas as partes interessadas: comunidade, ciência, governo e setor privado. Como profissional de saúde atuo como cientista no cargo de pesquisadora em saúde pública e, dessa forma, venho aplicando metodologias e ferramentas que envolvem análises ambientais, de saúde e do contexto de vulnerabilidade social e econômica para avaliar o risco de exposição da população à degradação ambiental nessa era do Antropoceno em que vivemos. Desenvolvemos ciência no contexto da ação onde o nosso laboratório é a cidade ou o território, onde nossas hipóteses científicas são baseadas em problemas reais de contaminação ambiental que afetam a saúde de uma comunidade e encaminhamos as evidências desses estudos ao governo local para dar suporte a tomada de decisão.
JS: A Organização Mundial dos Médicos de Família – WONCA - e a Planetary Health Alliance vêm reforçando a ação dos médicos da família e profissionais da saúde pela Saúde Planetária. Como você observa a importância desse papel coletivo, responsável e acolhedor?
NV: A Saúde Planetária surge pela necessidade na mudança de paradigma da forma como tratamos a saúde. Desde 2015 uma publicação emblemática da Comissão do Lancet e da Rockfeller Foundation trouxe uma discussão acerca da necessidade de salvaguardar a saúde humana na Era do Antropoceno. Neste cenário, diversos aspectos são discutidos sobre o impacto das mudanças no ecossistema do planeta resultantes das atividades humanas e como isso têm afetado a saúde humana. Traz uma reflexão para o paradoxo que vivemos. Para alcançar os indicadores que têm melhorado a expectativa de vida de 43 para 72 anos, a redução da pobreza extrema e as taxas de mortalidade infantil, dependemos de inúmeras tecnologias que têm explorado os recursos naturais em taxas sem precedentes e que estão se esgotando no planeta. Esse desequilíbrio vem extrapolando algumas fronteiras planetárias e uma delas se trata das mudanças climáticas. Este é atualmente o principal cenário que traz uma urgência para a atuação do médico com a lente da saúde planetária, visto que os impactos na saúde podem vir de forma direta e indireta. São danos provocados pelos eventos extremos, ondas de calor, poluição do ar influenciando o surgimento e agravamento de doenças não transmissíveis, escassez e contaminação da água, alteração na segurança alimentar, na migração de vetores facilitando a disseminação de doenças infecciosas e também alterações no padrão de saúde mental pela ansiedade e stress provocados pela crise climática. Trazer os médicos para o reconhecimento dessa emergência em saúde é a forma de adaptar aos impactos que já são vividos por grande parte da população e em especial os mais vulneráveis, pois a magnitude do risco depende da exposição e da vulnerabilidade. Estudos têm demonstrado que o profissional de saúde, especialmente os médicos tem um dos maiores níveis de credibilidade, colocando-os como protagonistas nesse momento de imperativo para a ação climática. Os benefícios de uma conduta clínica baseada em Saúde Planetária podem salvar vidas diretamente e também ajudar na conscientização por estilos de vida mais saudáveis que protegem a saúde humana e o planeta.
JS: Incluir estudantes de Medicina neste processo pode auxiliar na mudança de postura e na forma de se relacionar com o paciente, com tratamentos? Como a longo prazo podemos ver esta transformação?
NV: A lente da saúde planetária pode auxiliar na visão clínica e, portanto, ajuda a interpretar as condições de saúde a partir da exposição vindas do ambiente externo. As condutas têm sido aplicadas a partir de ferramentas que estão sendo desenvolvidas através desse contexto, que vão desde as recomendações básicas relacionadas à mudança no estilo de vida considerando, por exemplo, os principais fatores de risco associados às doenças crônicas como a dieta, o sedentarismo e a poluição, como também uma simples prescrição que pode ser avaliada a partir de um contexto ambiental, analisando o uso de determinados dispositivos e doses que podem interferir na cadeia de impacto e pegada de carbono. As condutas terapêuticas são avaliadas num contexto mais amplo.
JS: Ações vêm sendo realizadas na Ilha de Maré/BA, com a participação dos estudantes da Suprema. Como são desenvolvidas estas estratégias e também a aplicação da visão de Saúde Planetária neste local?
NV: Celebramos um acordo de parceria entre a Suprema e Fiocruz para o desenvolvimento de um dos eixos do Projeto Planet&AR que trata da formação médica pela lente da Saúde Planetária. Neste projeto estamos trabalhando inicialmente com estudantes de medicina, e futuramente pretendemos que essa formação alcance mais cursos da área de saúde e afins. Estamos trabalhando com comunidades vulneráveis e com alto grau de exposição a poluição do ar, a partir do desenvolvimento de estratégias que envolvem reconhecimento também de outros aspectos no território, como as condições socioambientais, econômicas e sanitárias - determinantes de saúde ainda pouco discutidos na formação médica -. A lente da Saúde Planetária desenvolvida pelo Planet&AR ampliará a visão clínica para a identificação de condições de saúde além do determinismo biológico.
Para a Fiocruz destacamos a importância da Suprema ter acolhido o projeto colocando à disposição o seu corpo discente e docente, bem como a disponibilidade de atualizar o currículo, que visa a formação de profissionais capazes de compreender o impacto da degradação ambiental e a correlação com a saúde humana, a partir da lente de Saúde Planetária. A receptividade da direção, o envolvimento do Professor Coordenador Marcos Moura e o voluntariado dos alunos foram essenciais para a realização desse projeto. Os alunos têm uma oportunidade de aprendizado em campo, ressaltando aspectos de território saudável e sustentável, construindo um aprendizado que garantirá o desenvolvimento de habilidades e competências que os tornarão profissionais diferenciados para exercer a medicina com visão planetária, humanista e de vanguarda seguindo princípios adotados pelas instituições mais renomadas do mundo, como a Harvard.
Projeto Planet&Ar em Ilha de Maré
Projeto Planet&Ar em Ilha de Maré
JS: O que podemos aprender e fazer neste período pós-pandemia que irá impactar no meio ambiente e na saúde da população?
NV: Se tem algo que a pandemia nos ensinou, uma das coisas mais importantes é que se algo é realmente urgente o mundo pode parar. A decisão de parar o mundo para conter um agente infeccioso fez também perceber outras questões como a diminuição da poluição no período de lockdown; veio à tona as hipóteses ambientais no surgimento do novo coronavírus; o reconhecimento de que estamos à beira de um colapso e também que o desenvolvimento sustentável deve levar em conta o surgimento de novas pandemias. Nesse contexto, surge o movimento de profissionais de saúde chamado Healthy Recovery (Recuperação Saúdavel), onde profissionais de saúde do mundo inteiro se juntaram para elaborar uma carta que foi dirigida aos líderes do G20 contendo uma prescrição para o planeta, são recomendações para a recuperação saudável no pós-pandemia.